Louco
Observava, na esquina escura daquele beco fedorento. A fumaça do cigarro irrita meus olhos. Mas não perco de vista a janela. Não uma janela qualquer, a janela dela. Pensava nos últimos dias. Em como eu, cafajeste, havia caído tanto. Me sentia sem chão. Meu mundo todo revirado. Por causa dela. Todas as minhas angústias e medos surgiram. Como um furacão, varrendo para longe toda e qualquer esperança de proteção. Seu perfume, o cheiro que exalava depois do banho, suas curvas, aquele olhar safado e ao mesmo tempo terno. Suas doces palavras de carinho. As horas ao meu lado. Sua mão me amparando quando caía na sarjeta, embriagado. Sangrava por ela. Pela mulher-amante que tinha esbarrado sem querer. “Mas que merda!”, exclamei mentalmente. Onde estariam meus brios de macho comedor? Como iria encarar a roda do bar. Onde conto minhas conquistas, cada detalhe sórdido, das trepadas que dava. Onde bebo com prazer os olhares invejosos dos meus amigos. Onde tantas vezes enchi a cara para esquecer, dela. A janela escura não dava o menor sinal de esperança. Esperança de quê, porra? De ter uma vidinha mais ou menos, da infernal rotina do casamento? Do papai-e-mamãe regulamentar, que tantas vezes ouvira os otários casados reclamarem? Que se foda. Eu quero esta merda. Casaria com prazer, com ela. Por que não disse antes? Sou uma besta. Agora estou aqui, numa esquina fétida, angustiado, cercado por amarguras, desesperançado. Onde estará ela? No mínimo trepando com outro otário, que se deixou levar pelo canto de sereia. Vagabunda. Meus chifres crescem. Cadê a maldita garrafa? Aqui, aqui, ah, minha companheira, que tanto me consolou. Que presenciou minhas conquistas fugazes. Apoiou nas horas incertas e inúteis. Dê-me um gole. Um não, vários. Preciso de lucidez, coragem. Vislumbro um vulto. Há luz agora. É ela, minha amada. Não, a piranha que me sugou a alma. Apago o cigarro, o último. Dou meus passos. Dou-lhe um tiro.
Vagabunda.
Escrito pelo Bêbado de Rayol.
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Publicado originalmente no blog Pseudo-Poemas. Leiam também o que publico no Cantábile. Em ambos estão os textos proibidos pela bíblia e pelo Vaticano. E agora também no Memórias Póstumas de um Puto Prestimoso.
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